Na história do sistema internacional, há uma interrupção muito importante que temos de considerar. É a invenção do multilateralismo. Essa invenção foi progressiva e a palavra «multilateralismo» apareceu em 1945 enquanto o processo do multilateralismo havia sido iniciado no final no século XIX com as primeiras conferências internacionais e as primeiras organizações internacionais. Mas o movimento principal ocorreu em 1919 com o Tratado de Versalhes quando foi criada a Liga das Nações, e, depois, depois da Segunda Guerra Mundial, as Nações Unidas. Multilateralismo é uma transformação das relações internacionais. As relações internacionais eram feitas, no início, de relações bilaterais, ou seja, de um Estado para outro. Multilateralismo significa um Estado com todos os outros, ou partes dos outros, ou ao menos dois outros, isto é, significa superar essa relação «cara a cara» , que era a principal característica das relações internacionais tradicionais. Essa transformação teve implicações muito importantes, consequências muito importantes para o próprio significado das relações internacionais. Eu distinguirei quatro importantes implicações. A primeira é a ideia de comunidade internacional. Se as relações internacionais não são mais relações «cara a cara», isso sugere que agora a arena internacional é feita de uma potencial comunidade internacional. Eu disse potencial porque seria excessivo, abusivo, falar de uma comunidade internacional, que não é organizada, até agora, especialmente agora. Mas a ideia do multilateralismo resulta na perspectiva de uma comunidade internacional criada. Isso quer dizer que a arena internacional não é mais essa luta de gladiadores de Hobbes, a comunidade internacional é uma espécie de tentativa de superar essa luta permanente entre gladiadores, entre Estados-nação. A segunda implicação é a ideia de segurança coletiva. Na visão tradicional das relações internacionais, a segurança é feita através de uma frágil balança de poder, ou seja, estratégias individuais de Estados, que vão se adaptando umas às outras. Agora, com o multilateralismo, percebemos a ideia de um possível regime de segurança coletiva, isto é, uma visão sobre segurança que pode ser feita de normas definidas de cima, isto é, pela comunidade internacional, como um limite para todos os membros dessa comunidade. A terceira implicação é que o direito internacional é mais importante, mais decisivo, do que a soberania. Se há uma segurança coletiva, isso quer dizer que há uma norma coletiva, um direito coletivo que está acima das nações, da soberania nacional dos Estados, ou seja, o multilateralismo está, necessariamente, desafiando a visão tradicional de soberania. E a quarta implicação é que, através do multilateralismo, pode-se definir setores de regimes internacionais, ou seja, um tipo de ordem internacional que é tido como organizado por normas adotadas pelos Estados-nação. O setor financeiro, com a criação das instituições de Bretton Woods, particularmente o FMI, e também o desenvolvimento com a criação do Banco Mundial, mas também com as agências da ONU, um regime internacional da saúde com a OMS – Organização Muncial da Saúde, um regime da educação com a UNESCO, um regime alimentar através da FAO, e um regime do trabalho e do direito social, direito social internacional, através da OIT – a Organização Internacional do Trabalho. Isso quer dizer que esses regimes internacionais estão abrindo caminhos para a intervenção nas relações domésticas de todos os outros atores, todos os outros Estados. É por isso que eu disse que esse multilateralismo está pavimentando o caminho para a superação da soberania nacional, e é por causa disso que também o multilateralismo está despertando tantas relutâncias entre aqueles Estados que estão fortemente comprometidos com a visão restrita da soberania nacional. A parte mais importante dessa palestra é considerar os problemas que são criados, que são desencadeados, por esse multilateralismo. Com o multilateralismo, temos realmente novas relações internacionais. Essas novas relações internacionais implicam importantes desafios para a ordem tradicional, para o conceito tradicional das relações internacionais. Estamos preparados para resolver esses dilemas? Distinguirei quatro dilemas, quatro problemas, que estão emergindo do multilateralismo e desse desenvolvimento multilateral do mundo. O primeiro é o problema da inclusão, isto é, sempre houve uma espécie de relutância em incluir todos os Estados nessas instituições multilaterais. Depois da Primeira Guerra Mundial, as nações derrotadas não foram admitidas na Liga das Nações. A Alemanha, por exemplo, não foi admitida e só foi incluída em 1926, ou seja, 7 anos depois da criação da Liga das Nações. Mas depois da Segunda Guerra Mundial, Alemanha, Itália, Japão, ou seja, todas as nações derrotadas na Segunda Guerra Mundial, não foram admitidas, sendo assim, pode-se dizer que esse mundo multilateral é um mundo estranhamente inclusivo. Mas e os tão importantes Estados na arena internacional, como a China, a China de Pequim, que foi admitida ao invés de Taiwan, apenas em 1971? O Vietnã foi admitido apenas em 1977, o que quer dizer que depois da Guerra do Vietnã e durante a Guerra do Vietnã, que foi uma das principais guerras do mundo pós-1945, o Vietnã não era membro das Nações Unidas. Os Coreanos foram admitidos somente em 1991. Agora, e a Palestina, que não é membro das Nações Unidas? E Taiwan, que não é mais membro das Nações Unidas? E esses Estados não reconhecidos que, entretanto, são governos ativos na ordem internacional, como o Kosovo, como a Somalilândia, como a Puntlândia, todos esses Estados não reconhecidos, e outros, que não são membros das Nações Unidas? E, no entanto, dentro dessas partes do mundo, há um risco real de tensões internacionais e conflitos internacionais, sendo assim, a ONU não está autorizada a moderar os principais conflitos do mundo, porque alguns dos protagonistas principais não são admitidos como membros das Nações Unidas. Esse é um primeiro desafio. O segundo desafio seria: o multilateralismo é apenas um multilateralismo interestatal? Podemos considerar, agora, no terceiro milênio, no começo do século XXI, que apenas Estados são atores da arena internacional? Atores não estatais devem ser incluídos nas negociações, nas deliberações, no processo global, e, se eles não estiverem lá, há um forte risco de uma capacidade limitada das Nações Unidas de resolver os problemas. É por isso que o grande Secretário-Geral Kofi Annan considera que, antes de tudo, o novo multilateralismo deve ser um multilateralismo social incluindo os principais atores não estatais, é por isso que, por exemplo, ONGs são cada vez mais reconhecidas no ECOSOC, que é o Conselho Social das Nações Unidas. Esse Conselho deve ser reforçado pois é muito fraco atualmente e deve incluir ativamente todas essas cerca de 3000 ONGs que são neste momento reconhecidas pelo ECOSOC. Mas Kofi Annan lançou também o Pacto Global, pelo qual ele convidou as principais empresas multinacionais para participarem de um projeto multilateral em que elas declaram estar comprometidas com os valores internacionais, e em troca recebem um «selo» dado pelo multilateralismo. Essa inclusão de novos atores é provavelmente um dos maiores desafios com os quais teremos de lidar nos próximos anos e nas próximas décadas. O terceiro desafio é, claro, a questão primordial da paz mundial. Mas a paz deve ser considerada não apenas como ausência de guerra, a paz deve ser considerada uma questão de segurança humana isto é, pessoas livres do medo, como foi corretamente apontado pelo PNUD, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o qual estabelece sete «proteções» humanas: segurança alimentar (não se esqueça de que temos a cada três horas 2800 pessoas mortas pela fome), mas também proteção à saúde, proteção ao meio ambiente, proteção econômica, cultural, individual e política. Isso significa ampliar a agenda multilateral, considerando que as principais questões sociais são as questões internacionais mais importantes na atual agenda global. E o quarto e último desafio é a habilidade do multilateralismo de contenção do poder. O multilateralismo é um clube de potências ou uma representação real da comunidade internacional? O problema é que as principais questões são controladas pelo Conselho de Segurança, e o Conselho de Segurança é constituído, em parte, por cinco membros permanentes, e esses membros permanentes, ou seja, Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido, têm um poder de veto. Isso quer dizer que eles podem obstrutir quando vetam uma decisão que não está de acordo com o que eles desejam, ou seja, é impossível obrigar esses poderes a cumprirem certas decisões, logo, as principais questões internacionais são, na verdade, controladas por esses cinco poderes. Nós estamos agora em um mundo que é globalizado, e em um mundo globalizado, atores locais são cada vez mais importantes, cada vez mais decisivos, e, portanto, o Conselho de Segurança está diante de duas dificuldades. A primeira é: como abrir esse Conselho de Segurança para novos poderes, isto é, para poderes emergentes como o Brasil, a Índia, a África do Sul, o Japão,a Alemanha e outros? E a segunda questão é: é possível, no mundo atual, fazer cumprir decisões tomadas somente pelo P5 e que se referem a atores locais que estão ausentes na deliberação? Isso não é possível. Logo, estamos agora em uma situação muito singular na qual potências decidem não intervir, como é o caso na Palestina quando Israel violou as resoluções do Conselho de Segurança, ou quando decidem intervir se o seu interesse estiver envolvido em alguma questão internacional, produzindo resultados que não são muito convincentes. Então, está muito claro agora, com os novos conflitos internacionais, que é preciso reformular a capacidade de resolução de conflitos das instituições multilaterais. Essas instituições sobreviverão se formos capazes de lidar, de fato, com elas.