[SEM SOM] Olá, sou Celeste Ribeiro de Sousa e vou falar do romance O Tigre Azul. O livro O Tigre Azul, Der Blau Tiger, que traduzi foi escrito pelo alemão Alfred Döblin. Döblin, nascido 1878 e falecido 1957, tinha ascendência judaica, era simpatizante dos ideias de esquerda e adepto do sionismo. Assim 1933 Hitler ordenou que seus livros fossem queimados praça pública. e Döblin teve que se exilar, primeiro na Suíça, depois Paris. Foi na Biblioteca Nacional da França, durante suas visitas, que o escritor se deparou com livros de etnologia sul-americana, muito bem ilustrados que despertaram a sua atenção e o encantaram. Livros como os de Charlevoix, Métraux, Southey, entre muitos outros, despertaram nele a inspiração para escrever três romances sobre o relacionamento entre os brancos europeus e os povos por eles conquistados na América do Sul, mesmo sem nunca ter estado no continente. Foi assim que com dificuldades devidas à Segunda Grande Guerra, foram publicadas assistematicamente os três volumes. A saber, Land ohne Tod, Terra sem morte ou Terra sem males, Der blaue Tiger, o Tigre Azul e Der neue Urwald, a nova floresta virgem. Os títulos e os conteúdos dos romances vêm a sofrer alterações conforme o ano e a editora da publicação. Hoje o título desta trilogia está estabilizado Amazonas, Amazonas. O segundo volume, o Tigre Azul, Der blaue Tiger, trata do trabalho e do experimento inédito dos Jesuítas junto aos índios nas missões no continente Sul-Americano. Todavia o Tigre Azul além de ser o título do segundo volume da mencionada trilogia, é também uma figura apocalítica da mitologia dos índios guaranis. Na linguagem indígena é jaguarovi, que quer dizer jaguar azul, conforme o etnólogo alemão Curt Nimuendaju Unkel, falecido no Brasil 1945. Foi ele que vivendo junto aos índios Apokokuva-Guarani, transcreveu os sons escutados diretamente dos indígenas. Esse jaguar ou tigre azul, animal apocalíptico da mitologia indígena, nas palavras de Unkel teria a aparência de belo cão, grande, mas não gigantesco e seu pelo seria de maravilhoso azul celeste. Quando ele descesse do céu cantando, nem o guerreiro mais destemido escaparia de sua voracidade. Presente no título do romance, o Tigre Azul, anuncia o fim dos tempos, os tempos indígenas os tempos Jesuítas e de sua utopia sul-americana. O Tigre Azul é assim a porta de entrada para a terra com males e mortes. No romance ele é explicitamente mencionado pelo padre Jesuíta Gabriel Malagrida e a ameça contida no título do romance paira sobre toda a trama, que começa com a chegada dos missionários Jesuítas chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega ao porto de São Vicente e acaba com sua expulsão, pelo português Marquês de Pombal e pelo rei espanhol Carlos III. Não é possível comentar o romance O Tigre Azul, sem se ter mente as posturas teóricas de seu autor Alfred Döblin sobre a natureza do romance, isto é da obra literária. Diz ele, por exemplo no ensaio O romance histórico e nós, que todo o romance precisa de fundo de fatos reais, que o romance histórico é primeiro lugar romance, segundo lugar não é história, que o romance desfigura a história sim, falsifica-a, deturpa-a. Este ensaio encontra-se no livro A construção da obra épica e outros ensaios de Alfred Döblin, da editora da Universidade Federal de Santa Catarina. Então para Alfred Döblin o romance O Tigre Azul não é história, embora se movimente por entre acontecimentos da macro-história, que servem justamente de espinha dorsal à obra. Döblin dedica-se a preencher com a sua criatividade poética os interstícios da macro-história. Quer dizer, ocupa-se com a criação, com a invenção de micro-histórias verossímeis que ele atrela de modo peculiar à espinha dorsal mencionada e que estimula o leitor a refletir sobre os conflitos expostos. Dos temas de grande repercussão no romance é a caça aos índios, sua posterior venda seguida de escravização. Uma grande tragédia anunciada pelo Tigre Azul, mas por detrás desse tema da escravização que vitima os indígenas, o autor perspicaz não deixa de esticar o dedo para os mesmo índios que submetem as suas próprias mulheres, que pouco apreço têm por elas. A história da Índia Maladonata, nora do cacique paraiata, ilustra essa mazela. Os maus tratos aplicados aos silvícolas por parte dos colonizadores, que não respeitam as coordenadas vindas da Corte Espanhola, é motivo da vinda dos Jesuítas ao continente sul-americano. O Vaticano está ao lado da Coroa na tarefa missionária de levar aos índios, ditos primitivos, isto é tabula rasa, a luz da verdade que se supunha única naqueles tempos religiosos da Reforma e da Contra-Reforma e da Guerra dos 30 Anos. E a ação dos Jesuítas no continente mostra-se tudo inovadora. A princípio é regida por ideais utópicos, pretendem os missionários comandados pelo padre Manuel da Nóbrega concretizar terras sul-americanas, a nova Jerusalém bíblica. Junto com os índios que aceitam segui-los pela floresta, os Jesuítas vão fundando na região de Guaíra, novos aldeamentos, seguindo planos urbanísticos fantásticos, considerando as circunstâncias. O embate e a contaminação mútua entre o pensamento teológico dos padres e o pensamento mágico dos índios está expresso de modo exemplar no romance. Depois do ataque e destruição das missões de Guaíra, os sobreviventes sob a liderança do pragmático padre Montoya avançam para a região do Tape. Como estratégia de sobrevivência e com a autorização da Coroa e do Papa, armam-se e fecham-se ao mundo exterior, o que no romance é considerado por outros membros da igreja, a exemplo do Bispo Félix e mesmo do Governador D. Alvar, como a criação de estado dentro do estado, algo potencialmente ameaçador termos políticos. Houve inclusive críticas de que os Jesuítas teriam criado estado comunista, mas essa estratégia os Jesuítas desenvolveram, no seu modo de ver, modelo de escola bastante original. Ao mesmo tempo que os índios pacíficos, todos tratados de igual modo, vestidos de igual maneira, cultivavam a terra segundo os seus talentos, escolhiam comida farta, distribuída igualmente para todos, também aprendiam a arte da pintura de imagens de santos, aprendiam música sacra produziam seus próprios instrumentos musicais, formavam coros infantis que cantavam uniformizados durante a missa, aprendiam inclusive a escrever latim, raramente espanhol. Lembremo-nos que de 1580 a 1640 o território da América do Sul foi todo espanhol porque Portugal por falta de herdeiros masculinos ao trono perdera a independência para o rei da Espanha, filho de portuguesa. Depois do padre Montoya as missões no Tape alcançam nível de desenvolvimento extraordinário. Arquitetos europeus chegam a ser chamados para dar a sua contribuição, os excedentes da produção das inúmeras fazendas são vendidos, com o dinheiro passa-se a comprar ouro e prata para decorar as igrejas, os padres passam a andar recolhidos e a sair só grande eventos com trajes sempre mais pomposos. Não fosse o incidente com a fortificação portuária de Sacramento, construída 1680 pelos portugueses às margens do Rio da Prata e frente à Buenos Aires, talvez o projeto jesuítico tivesse fim bem diferente e o romance, nesse caso, não teria o título de 'O Tigre Azul'. Fato é que Sacramento foi construída nesse espaço pelos portugueses para marcar fronteira e para servir de entreposto comercial, o que incomodou a população de Buenos Aires. Não foi fácil chamar a atenção da coroa espanhola para o caso e demorou-se muito para resolver o problema entre indas e vindas de Espanha a Portugal. Por fim, chegou-se a uma solução no Tratado de Madri. O porto português de Sacramento seria trocado pelo território espanhol, onde se encontravam as missões orientais, as quais deveriam deslocar-se para outro local com teres e haveres. A fora os padres rebeldes e o cacique Sepé Tiaraju, ninguém reagiu. Mesmo os padres rebeldes, diante da situação explosiva e belicosa, acabaram por ceder, mas Sepé, e depois dele Nicolau Languiru, levaram a resistência às últimas consequências. Ou seja, a derrota final na chamada Guerra Guaranítica e ao começo do fim das missões jesuíticas na América do Sul. Ilustrando de maneira paradigmática a resistência indígena não só aos colonizadores, mas também ao novo Deus anunciado pelos Jesuítas, a história poeticamente engendrada por Döblin de Mendonça e Taioba, provavelmente inspirada pelo Real Massacre do Padre João de Castilho às mãos dos índios Mbyá-Guarani do cacique Nheçú. O fim da ordem dos Jesuítas vem seguida selada Portugal e na Espanha. A figura mítica do Tigre Azul toma corpo, impõe-se e encerra o romance. Mas voltemos ao ensaio 'O romance histórico e nós', e prestemos atenção à seguinte declaração de Alfred Döblin, seu autor, diz ele: "Uma vez que o emigrante tem falta do presente, seu desejo é encontrar paralelos históricos, localizar-se historicamente, justificar a necessidade das recordações, a tendência para consolar-se e para vingar-se, pelo menos de modo imaginário". Lembremo-nos que escritura do ensaio ocorreu 1936, quando Döblin já era imigrante forçado Paris. A escritura da trilogia pode então ser interpretada como paralelo histórico encontrado pelo escritor diante da falta de tempo presente, quer dizer, diante da falta da terra natal e da língua materna, paralelo histórico para como ele diz 'localizar-se historicamente para consolar-se e para de vingar-se, pelo menos de modo imaginário'. No caso do romance 'O Tigre Azul', espelhada nessa presença mitológica funesta, estaria a ameaça poderosa e incontrolável no regime nazista capitaneado por Hitler. Escrever sobre a desagregação dos mundos indígenas, sobre a ação missionária dos Jesuítas, sobre os desmandos dos colonizadores, assunto povoado por personagens, no fundo, todas elas desterritorializadas, possibilitava a Döblin compreender pouco das circunstâncias político sociais quiçá psicológicas, seriam plasmado ao seu próprio redor. Todavia, a sombra amedrontadora do tigre pairando sobre a humanidade não é ocasional, mas uma constante desde tempos imemoriais, conforme as citações da Bíblia e da literatura greco-latina revelam no romance. Por exemplo, a Nova Jerusalém mencionada no Apocalipse de João que encontra paralelo na terra sem males dos índios contrapõe-se à antiga Jerusalém perseguida. O Bispo italiano Félix, para descrever o inferno, experimentada ao lidar com chantagem dos traficantes de índios, vai buscar sua biblioteca a 'Ilíada', de Homero, que narra a morte do grego Aquiles terras de Tróia. Não contente com essa obra, ainda procura na 'Odisséia' as agruras de Ulisses no seu regresso à casa depois da destruição dos troianos. E ainda recorre à 'Édipo Colono', do Sófocles, para ver se ali pode encontrar a catarse procurada, pois no 'Édipo Colono' são contados os últimos dias da vida do mitológico Édipo já velho, cego, mendigo e também expratiado e errante. Percebamos que por detrás de Félix, de Aquiles, de Ulisses, de Édipo, está espelho o próprio escritor Alfred Döblin exilado. E será que o Tigre Azul dos índios não permanecem ação, mostrando espelho às guerras hodiernas que continuam desalojando e empurrando pessoas para fora de suas terras natais? Quando olhamos o romance dessa perspectiva, podemos dizer que Döblin propõe uma espécie de ajuste de contas geral e épico com a civilização ocidental, pois este romance e a própria trilogia coloca evidência a necessidade de novo relacionamento do 'eu' com a realidade, isto é, com os povos silvícolas e com a natureza. Muito obrigada. [SEM_ÁUDIO]